O Leviatã e a Hidra: Por que o Brasil Erra ao Lutar sua "Guerra" Urbana
A violência no Brasil, especialmente em centros urbanos como Rio de Janeiro, Salvador e capitais do Nordeste, tornou-se um debate crônico sobre a falência do Estado. Assistimos a megaoperações policiais que resultam em dezenas de mortos e na apreensão de fuzis, ao uso de barricadas como táticas de guerrilha e à expansão de um "Estado paralelo" que não se limita ao tráfico.
Organizações como o PCC e o Comando Vermelho (CV) agora operam como "narcomilícias": elas cobram "taxas" por serviços básicos como gás, internet "gatonet" e até transporte. Elas não são mais meros "bandidos"; são corporações transnacionais.
A pergunta que fica é: por que o Estado brasileiro, com todo o seu poderio, parece incapaz de resolver esse problema? A resposta é desconfortável: não estamos falhando por falta de força, mas por um erro histórico de diagnóstico. Estamos aplicando a estratégia errada para o inimigo errado.
O Diagnóstico: O "Canudos Urbano" e a Falha do Paradigma Bélico
A estratégia atual do Estado, consolidada na chamada "Guerra às Drogas", é o que podemos chamar de Paradigma da Aniquilação. É uma lógica de guerra total, focada na invasão territorial, no confronto militarizado e na eliminação física do "inimigo interno".
Este paradigma não é novo. Foi o mesmo usado pelo Estado brasileiro para esmagar ameaças que considerou "bárbaras" ou "ideológicas".
- Na Guerra de Canudos (1896-1897), a República não negociou. Ela enviou quatro expedições militares e mobilizou quase metade do Exército da época para aniquilar a comunidade messiânica de Antônio Conselheiro, vista como uma ameaça ideológica e uma "cidade-utopia" que negava a ordem vigente.
- Na Guerra do Contestado (1912-1916), a resposta foi similar. Contra camponeses despossuídos pela construção de uma ferrovia e reunidos por monges, o Estado usou armamento pesado e, pela primeira vez no Brasil, aviões para bombardear e "limpar o terreno".
- Na Revolução Federalista (1893-1895), o "Marechal de Ferro" Floriano Peixoto viu a revolta não como uma disputa política, mas como uma ameaça existencial à República. A resposta foi o terror de Estado, simbolizado pelo massacre de centenas de prisioneiros na Ilha de Anhatomirim e a renomeação da capital "Desterro" para "Florianópolis", um ato de punição simbólica.
- Nas Revoluções Pernambucanas (1817 e 1824), o Estado foi além da simples supressão militar. Como punição pelas rebeliões separatistas e republicanas, o poder central (primeiro a Coroa e depois o Império) retaliou desmembrando o território da província. A emancipação de Alagoas está diretamente ligada aos eventos de 1817, e após a Confederação do Equador em 1824, D. Pedro I tomou a "amarga decisão" de transferir a vasta Comarca do Rio São Francisco para Minas Gerais (e depois Bahia), uma "pesada punição moral" que reduziu o território pernambucano quase pela metade.
O fracasso retumbante das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro é a prova moderna dessa falha de diagnóstico. As UPPs começaram com uma "narrativa de sucesso" (2008-2013), com redução real de tiroteios e apoio dos moradores. Elas faliram porque eram, em essência, uma ocupação militar (Paradigma da Aniquilação), muitas vezes usando as Forças Armadas em Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Mas o PCC e o CV não são Antônio Conselheiro. Eles não têm um projeto de utopia social; eles têm um projeto de hiper-capitalismo predatório. O Estado está travando um "Canudos Urbano" contra um inimigo que opera como uma corporação multinacional.
Megaoperações que matam dezenas e fecham vias não quebram essa estrutura. Elas são apenas uma performance de soberania, uma "punição territorial" similar à que o Império impôs a Pernambuco ao tomar seus territórios (como Alagoas e a Comarca do Rio São Francisco) após as revoluções de 1817 e 1824. Elas punem o território, mas deixam a rede de negócios intacta.
O SUCESSO ESQUECIDO: Quando o Estado Sabe Agir
A história do Brasil, no entanto, nos mostra outros dois paradigmas de resolução de conflitos, muito mais eficazes, que foram convenientemente esquecidos na segurança pública.
1. O Paradigma da Integração (A Solução de Elite)
Quando a ameaça é composta por membros da própria elite, a resposta do Estado não é a aniquilação, mas a negociação. O melhor exemplo é a Guerra dos Farrapos (1835-1845).
Apesar de ter sido a guerra civil mais longa do Brasil, um movimento separatista que proclamou duas repúblicas, ela não terminou com um massacre. Ela terminou com o Tratado de Poncho Verde. O Império, para garantir a paz, fez concessões incríveis:
- Deu anistia total aos rebeldes.
- Incorporou os oficiais farrapos ao Exército Imperial com suas patentes.
- Atendeu às demandas econômicas que iniciaram a guerra (taxação do charque).
A lição: quando o inimigo é visto como "um de nós" (uma elite dissidente), o Estado sabe negociar e reintegrar.
2. O Paradigma da Inteligência (A Solução de Máfia)
Este é o ponto crucial. O Estado brasileiro sabe como combater organizações criminosas complexas e "mafiosas". Mas esse combate não é feito pelo Batalhão de Operações Especiais; é feito pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público (MP).
O "caso de sucesso" no combate a máfias não usa tanques. Ele usa:
- Inteligência e Investigação Proativa: Mapeamento de redes, análise de dados e cooperação internacional.
- Asfixia Financeira (Descapitalização): O foco é seguir o dinheiro, bloquear contas e apreender bens. É atacar a logística financeira, não o varejo na favela.
- Combate à Corrupção: Focar nos "facilitadores" dentro do próprio Estado (policiais, políticos, agentes) que dão sustentação à rede.
Operações como a "Termópilas" (que desmantelou esquemas de corrupção em Rondônia) ou o modelo da "Mãos Limpas" na Itália (que expôs a ligação entre crime e política) são os verdadeiros manuais de como desmantelar uma organização poderosa. O combate crônico ao Jogo do Bicho, que só sobrevive por sua profunda infiltração no Estado, prova que o problema não é o "bandido", mas a rede que o sustenta.
Conclusão: A Solução é Estratégia, não Força Bruta
O Estado brasileiro está preso em um ciclo vicioso. Ele insiste em tratar o PCC e o CV como se fossem o Arraial de Canudos, aplicando um modelo de aniquilação militar que, além de falido, é socialmente desastroso, letal e ineficaz.
As organizações criminosas modernas não são um Cangaço (banditismo de extorsão pré-moderno) nem um "Novo Cangaço" (ataques a bancos). Elas são empresas transnacionais.
A solução não virá de mais operações de GLO ou da militarização da polícia. A solução real, como ditam os Planos Nacionais de Segurança Pública e os próprios manuais da Polícia Federal, é uma mudança de paradigma:
- Abandonar a "Guerra às Drogas" e a lógica do confronto territorial.
- Adotar η Asfixia Financeira como política central, focando na descapitalização das facções.
- Investir maciçamente em Inteligência para identificar e neutralizar as redes de lavagem de dinheiro e corrupção.
- Combater a corrupção interna, que é o oxigênio que permite a sobrevivência dessas máfias.
O Brasil tem as ferramentas. A Guerra dos Farrapos e as operações de inteligência da PF provam isso. Precisamos parar de tentar reviver o massacre de Canudos nas nossas favelas e começar a tratar o crime organizado como o que ele é: uma rede econômica complexa que só pode ser derrotada com inteligência, e não com mais sangue.
OBS.: Esse texto não desonra os políciais envolvidos nas operações e nem inocenta os bandidos mortos nas ultimas operações. Infelizmente, quem reaje com armas contra uma força policial, está cavando a própria cova. O trabalho e a ação devem ser realizadas e se há reação violenta, a lógica é a legítima defesa e enfrentamento até as ordens serem cumpridas.

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